O mundo não é nem um pouco estático, por mais que seja esse o desejo de tantos. O desejo de Emilie, em verdade, naquele exato momento, era apenas ficar ali quieta, sozinha, e contemplar o brilho falso das pérolas de seu passado, garimpar seu cérebro por boas lembranças e afastar as crises e problemas e, acima de tudo isso, esquecer que o mundo gira. Esquecer que as horas passam. Esquecer que em algum momento iria amanhecer, ou então ela ficaria com sono e teria que procurar um espaço mais macio de chão para poder dormir, antes que a agitação do dia vindouro interrompesse seu sono. Só isso. Abandonar seus olhos sobre a multidão colorida e maquiada que passava por ela sem se perceber de sua presença, para entrar no Prytania, fumar lentamente seu cigarro... Mas, bem, o mundo não é estático.
Apenas um minuto atrás, encarava a multidão com olhos vazios de quem não estava ali e, em sua mente, relembrava os calorosos aplausos de uma audiência na França, mais ou menos seis anos atrás, depois de seu monólogo como Lady Macbeth... Seus lábios, sem se aperceber do movimento, contornavam as palavras que gritava em seu cérebro “Vem, deusa noite! Apaga-te na bruma dos infernos, pra não ver minha faca o próprio golpe, e nem o céu varar o escuro para gritar-me ‘Para! Para!’”, e o teatro inteiro se levantava, os aplausos ensurdecedores invadiam seu ser enquanto ela ofegava na ribalta, os cabelos caídos sobre os olhos arregalados, os braços abertos, o coração espancando seu peito, pulsante... E então, de repente, sem mais nem menos, seu triunfo é interrompido não por um, mas por dois, dois! Dois tarados!
Eis o maior problema de uma mulher quando vive na rua. Se bem que, antes, quando a depressão a impedia até mesmo de se mover e ela não tomava banho, dormia ou lavava as roupas, ninguém queria se aproximar. Ah, não, queriam era distância do ser repugnante que havia se tornado e, honestamente, ela também queria. Não sabia ainda que força era aquela que a fizera sobreviver. Mas, enfim, sobrevivera e se tornara alguém quase ‘decente’. Quem diria agora que ela vivia na mendicância? E, depois dessa transformação, eles surgiram. Vindos de todos os lados, nos momentos mais aleatórios, convidando-a para uma bebida, tocando seu cabelo sem permissão, oferecendo cigarros e caronas, chamando-a de coisas como ‘docinho’, ‘linda’ e ‘dama’. Mas esses eram quase inofensivos. Nem todos se tornavam violentos com um não. O grande problema é que, na distância, ninguém diz que Emilie é uma moradora de rua mas, uma vez próximo, olhando bem dentro dos olhos dela, as marcas estão lá, inegáveis, a roupa está puída, os machucados na lateral esquerda do rosto denunciam que o asfalto é o colchão... E ninguém quer ser desprezado por uma indigente, não é mesmo? Fere o ego. Aí mora o perigo.
Os dois chegaram ao mesmo tempo, um de cada lado, falando praticamente juntos, se enfiando sem permissão nas lembranças de Emilie usando um polido pseudo-cavalheirismo para se aproximar, e ela congelou. Não soube o que fazer. Estava encurralada. Encostou-se com tal violência na parede que soube no mesmo segundo que ficaria com os tijolos marcados nas costas. Tentou não arregalar os olhos. Essa espécie de homem é ardilosa, e, demonstrando seu medo, eles provavelmente só ficariam mais excitados. Engoliu em seco. O que seriam? Assaltantes? Estupradores? Quando ainda morava em Londres, houve uma época em que os jornais se ocupavam imensamente desses estupradores que andam em grupo. Mas não podia ser... Não, estavam no meio de um monte de gente, na frente do Prytania, não era possível que eles fossem fazer alguma coisa ali, atacá-la ou sei lá. Estavam mesmo tentando levá-la para outro lugar, mas ela não sairia dali, não por vontade própria. E, se eles tentassem alguma coisa...
- Eu não tenho dinheiro. – sua voz saiu sufocada, baixa, como se uma mão de ferro estivesse apertando sua garganta – Vão embora. Por favor, vão embora.
Malditos! Destruindo o que podia ser uma das noites mais bonitas que tinha desde que chegara a Nova Orleans. Céu claro, liso como um quadro de rococó, salpicado de estrelas tão pequenininhas que nem pareciam estar ali, uma lua minguante faceira, chão seco, tempo agradável, apenas memórias agradáveis se lhe ocorriam, o Prytania estava estreando uma peça e tivera o privilégio de acompanhar a chegada dos atores, o corre-corre com figurinos e adereços e até mesmo uma breve conversa entre duas atrizes que saíram para fumar, descalças, descabeladas e com a maquiagem pela metade. Estava sendo uma noite linda! Porque, porque tinham que aparecer agora? Os detestava, detestava mais do que tudo, mas, infelizmente, não podia fazer muito contra eles. Enfiou as mãos nos bolsos e apalpou suas bolas de malabarismo. Se fizessem qualquer movimento brusco, atacaria eles a boladas, o que fosse. Não ia ser novamente... Não deixaria... Não... Engoliu em seco novamente.
- Se vocês tentarem alguma coisa... – tentou soar o mais ameaçadora possível, mesmo com a voz estrangulada - ... Eu grito. Eu juro que grito.
E respirou fundo. Sentia que seu coração estava quase parado, como que suspenso, esperando o momento certo em que bombearia adrenalina e ela correria desabaladamente. Estava inteira gelada de medo. Um gesto, ela se repetia mentalmente, um só gesto brusco e daria o fora dali. Onde estava aquela sua força de Lady Macbeth agora que ela precisava? “Vem, deusa noite...”