UM MÊS ATRÁS…
O dia já tava amanhecendo quando cheguei em casa, vindo do Baile. Tentei entrar discretamente, mas, alta como eu tava, acabei raspando a lateral do carro na mureta de entrada. O barulho piorou a recepção que recebi. Foi só botar um pé dentro de casa pra ela vir pro meu lado com os braços levantados, a voz alterada e os manjados chavões de mãe aflita. Mas, daquela vez, eu tava pronta pra fazer ela engolir as palavras!
- Eu tenho que sustentar a casa, limpar tudo, cuidar do seu gato! Você era a filha mais maravilhosa do mundo. O que deu em você?! Olha o que está fazendo consigo mesma, sua irresponsável!!!
- Irresponsável, é? Pois hoje é que eu te faço pagar com a língua! Cê não faz ideia da notícia que eu tenho pra te dar…
Diante da minha pausa dramática, ela cruzou os braços com uma expressão irônica muito irritante.
- Vamos lá, Ann. Me surpreenda.
- Acabei de arrumar um emprego!
- …?!
- Isso mesmo. E sabe quem vai ser meu chefe? O seu chefe! O sr. Vic-tor Ca-la-rram!!!
Ela caiu na gargalhada, e aquilo me enraiveceu dum jeito… Depois de engolir aquele desaforo da Gia, mais essa! Mas esperei ela pausar pra ir à forra.
- Quié, não tá acreditando, não? Pois então me diga: ele não falou com você no seu escritório ontem à noite? Viu minha foto em cima da sua mesa… Como eu podia saber disso se não tivesse falado com ele poucas horas atrás?
Ela estacou com cara de espanto, enquanto eu sorria vitoriosa. Adoro ganhar!
Depois, ela olhou pra mim de cima abaixo. Apertou o roupão contra o corpo com uma das mãos e, com a outra, esfregou a testa de um jeito nervoso. Era como se sentisse vergonha, ou algo assim. Mas ela devia tá feliz! Naquele momento eu percebi o quanto a insegurança profissional tava mexendo com a cabeça dela.
- Onde foi que você falou com ele?!
- Ah, foi num jantar dançante aí, num restaurante chique. Nós conversamos longamente e ele me ofereceu o cargo de... assistente pessoal. Aliás, essa gravata que eu tô usando é dele.
- O sr. Calarram viu você assim… descalça, pernas de fora, os peitos quase saltando desse decote abissal, e lhe ofereceu o emprego que era da srta. Beau... Ann, você anda se prostituindo!!??
Aí foi a minha vez de soltar uma gargalhada, embora aquela pergunta tenha me deixado puta da cara! Então ela pensava que eu não tinha competência nem pra ser uma bosta de uma assistente particular?! Mas aí eu me lembrei que o Victor começou a conversa comigo passando uma cantada… Implicitamente, eu tinha mesmo barganhado uma promessa de romance (e, portanto, de sexo) pela oportunidade de descobrir coisas ocultas. Se bem que, na altura da dança, eu comecei a ficar interessada nele. Sei lá, a desconfiança dela me deixou confusa. Voltei a falar, com raiva na voz.
- Quem cê tá pensando que eu sou, hein? Ele me deu o cargo por causa dos meus conhecimentos, que vão muito além de medicina! Aliás, em vez de você ficar aí me rebaixando com esse tipo de suspeita, devia me agradecer de pés juntos! Eu não só arrumei um emprego como ainda salvei o seu.
- Como é que é…?
- Falei pro Victor que o negócio no Garden District gorou porque o sr. Cole ou Coleman te fez propostas sexuais e você recusou. E ele acreditou em mim! Então, da próxima vez que cê falar com o Victor, vê se confirma a história, hein? Seu emprego depende disso.
- POR DEUS, ANN! Me diga que isso tudo é só mais uma das suas invencionices… Que você não ficou diante do sr. Calarram com um nada de roupa e nem contou para ele essa história absurda!
- Absurda por que, mãe? Quem não acreditaria? Como se dizia no seu tempo, cê ainda é uma "coroa enxuta"! Loira, atraente… que homem não se interessaria por você? A história foi pra lá de verossímil, e eu vi nos olhos do Victor que ele acreditou plenamente. Cê não percebe como eu agi bem porque anda perturbada.
Ela devia me agradecer. Mas não! Desembestou a gritar comigo.
- Pois saiba que hoje mesmo eu vou tirar essa história a limpo com o sr. Calarram! Se ele confirmar o que você disse, vou contar que é tudo mentira!
- Cê vai me fazer passar por mentirosa justo agora?! NEM PENSE!!!
- Mas você é uma mentirosa! Pelo amor de Deus, Ann! Você já foi uma moça tão sensata, mas agora só diz e faz coisas destrambelhadas. O sr. Calarram esteve na minha sala justamente para dizer que sabe que eu errei, mas que vou ter uma nova chance. Pessoas adultas agem assim! Elas assumem seus erros e procuram melhorar!
Aquilo me deixou possessa! Depois do que eu fiz por ela… Começamos uma discussão horrível! Andávamos de um lado pro outro, aos gritos. Acho que foi nessa hora que o gato apareceu na sala e ficou ali, olhando pra mim. A cabeça dele ia e vinha acompanhando meus passos. Ou, pelo menos, eu penso que foi assim. Na hora, minha preocupação era dissuadir ela de contar a verdade.
- SUA INGRATA!!! Eu tentei te ajudar e agora você vai pôr meu emprego em risco só porque eu contei uma mentirinha bem intencionada?! E ainda tem tanto menosprezo por mim que me acha incapaz de conseguir um emprego sem vender o corpo?!
Ela suspirou bem fundo e tentou acalmar as coisas. Olhando pra mim com uma detestável expressão de pena, falou:
- Ann, eu não sei o que foi que você queria ter conquistado e não conseguiu. Só sei de uma coisa: você é menor do que a pessoa que gostaria de ser, mas muito maior do que a pessoa em que realmente se transformou.
Aquelas palavras me petrificaram. Os olhos verdes do gato fixos em mim. Tanto tempo e dinheiro desperdiçados na compra daquela porra de gato egípcio com linhagem que, supostamente, remontava ao tempo dos faraós! Eu esperava tanto dele, como também de mim. E agora, tinha que escutar aquilo...
Se alguém pudesse vestir minha pele, não me censuraria pelo que aconteceu. Foi azar demais o bicho me encarar bem na hora em que a minha mãe me fitava com aquele olhar de piedade insuportável. Eu encarei o gato, e ele se encolheu um pouco, como se previsse o que viria. Mas ele não previa merda nenhuma. Era só um gato estúpido que usava coleira anti-pulgas. Era só um gato comum, um animal, um bicho. Comum como eu.
Caminhei uns poucos passos e o peguei no colo, com gestos naturais. Ela voltou a falar. Tinha os olhos úmidos e a voz chorosa.
- Minha filha, você precisa voltar para o tratamento.
Meus dentes rangeram de raiva quando envolvi o pescoço peludo com as mãos. As unhas do gato tiraram sangue do meu braço desesperadamente, mas foram apenas segundos até que eu partisse sua coluna. Ela bem que tentou tirar o animal de que nunca tinha gostado dos meus braços. Taquei o corpo já sem movimentos na cabeça dela. Depois, agarrei-a pelos cabelos, urrei de raiva e comecei a cobri-la de tapas, socos e, depois que ela caiu por sobre a mesa de centro, pontapés. Ela nem reagia; só gritava de dor e ficava encolhida.
Quando seus gritos viraram gemidos, minha fúria se voltou contra tudo. Um vaso foi parar no meio da tela da TV, o aquário espatifou-se no chão, enfeites de mesa atravessaram os vidros das janelas. Os vizinhos chamaram a polícia, mas eu não parei quando ouvi as sirenes.